Meta de reciclagem e incineração no Brasil
O Brasil deve saltar de uma taxa de reciclagem por volta de 2% para 48% em 18 anos. A meta foi instituída pelo Plano Nacional dos Resíduos Sólidos (Planares) em decreto do governo federal, publicado no dia 15 no Diário Oficial.
O Plano, que vem sendo elaborado desde 2019 e entrou em consulta pública em agosto de 2020, é um conjunto de estratégias para a gestão de resíduos nos próximos 20 anos e se adequa ao que ordenam outras leis já em vigor, como a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS, de 2010) e o Marco Legal do Saneamento (2020). A previsão é que seja atualizado a cada quatro anos.
O Plano prevê reciclagem, compostagem, biodigestão e recuperação energética. Ele reforça a meta do encerramento de lixões para 2024 — há mais de 3 mil ainda em funcionamento hoje no país, segundo os levantamentos disponíveis, e 40% dos resíduos gerados vão para locais inadequados.
Os lixões nunca foram permitidos. Depositar resíduos que causem poluição é crime ambiental desde o século passado. A PNRS determinou um prazo para o fim dos vazadouros: 2014. Essa meta depois foi postergada e escalonada pela lei do saneamento, com prazos para capitais e regiões metropolitanas terminando em 2021, e, em cidades com menos de 50 mil moradores, em 2024.
O Planares prevê recuperar 20% de recicláveis secos e 13,5% da fração orgânica e, para isso, todos os municípios devem ter coleta seletiva de orgânicos, compostagem ou digestão anaeróbia (degradação da matéria por microrganismos com produção de biogás e um substrato com propriedades fertilizantes) em escala piloto ou comercial. Em 20 anos, mais de 60% do biogás de aterros sanitários e de digestão anaeróbia deveriam viram eletricidade.
Para chegar a reciclar mais de 100 mil toneladas de resíduo sólido urbano por dia em 2040 (o país gera atualmente 217 mil toneladas/dia), como quer a meta, o plano traz a estratégia financeira, organizacional e institui como ferramenta um certificado de reciclagem.
Para custear a gestão de resíduos municipal, quem paga são os cidadãos. Toda cidade deve ter alguma forma de cobrança pelo serviço. “A meta da sustentabilidade econômico-financeira do Planares supre uma lacuna das leis. A PNRS indicava as mudanças necessárias, mas não dizia quem pagaria a conta. A lei do saneamento dizia que os titulares dos serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos deveriam instituir os instrumentos de remuneração. É importante, mas não vem para todo o sistema de gestão de resíduos. O Planares se pluga diretamente na PNRS e diz que a conta tem de ser paga por todos”, diz o presidente da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), Carlos Silva Filho.
Outra indicação importante, segundo Silva Filho, é que os municípios devem contratar legalmente catadores e cooperativas de recicláveis. Hoje, apenas 3,7% das prefeituras têm contrato formalizado. A proposta é que haja 95% de formalização de contratos com cooperativas e associações de catadores nos municípios até 2040.
O Planares lança o certificado de reciclagem nacional, centralizado, no programa Recicla +, com uma instituição verificadora. Já existem hoje empresas que emitem certificados e são aceitos pelos órgãos ambientais estaduais. O decreto reconhece a prática como válida e dá as regras. Basicamente, cooperativas e empresas de limpeza urbana que coletam recicláveis podem obter esses certificados ao venderem os materiais para indústrias recicladoras, via nota fiscal. As empresas que têm metas de logística reversa a serem cumpridas compram esses certificados para abater de suas metas.
A novidade é que as notas fiscais passam a ser verificadas por uma empresa independente nacional, contratada pelas empresas. A centralização eliminaria o risco de uma mesma nota fiscal ser usada para abater metas em estados diferentes.
A certificação pode ser uma boa ferramenta, mas, como é genérica, não faz com que as empresas busquem embalagens menos poluentes e mais recicláveis, urgência indicada por todos os estudos sérios sobre poluição plástica. Se uma empresa usa uma embalagem não reciclável de plástico, e compra certificados suficientes para abater sua meta, não haverá incentivo algum para que ela busque modificar os materiais que usa, pois os certificados designam apenas o material genérico: plástico.
Para Silva Filho, a preocupação é válida, mas a especificação poderá vir através de um aperfeiçoamento do Recicla + no futuro: “É um processo de transição e aperfeiçoamento de cultura. O sistema de créditos pode ajudar a identificar em primeiro lugar o volume dos recicláveis que existe e onde estão esses materiais. Um próximo passo poderia ser o cumprimento de metas pelo tipo de material colocado no mercado”, diz.
Os objetivos do Planares são ambiciosos. Uma meta polêmica é a de que 15% dos resíduos devem ser destinados a locais com tecnologia térmica para virar energia.
Essa parte agrada as empresas que se interessam pela incineração de resíduos, em usinas de recuperação energética ou em fornos das fábricas de cimento. A indústria de cimento usa a chamada tecnologia de coprocessamento, em que o resíduo substitui parte do combustível que alimenta a chama do forno — que transforma argila e calcário em clínquer (matéria-prima do cimento).
Existe uma movimentação para liberar a incineração no país. Um exemplo está no Projeto de Lei (924/2022), que cria o Programa Nacional de Recuperação Energética de Resíduos (PNRE), instituindo autoprodução e geração distribuída e isenção de IPI para aquisição de máquinas, equipamentos, aparelhos e instrumentos destinados à recuperação energética de resíduos.
Ao defender o PL, a Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren) diz que ele promove o incentivo à recuperação energética da fração não reciclável dos resíduos sólidos, além de incentivar, financiar e promover a estruturação de processos licitatórios para concessões municipais de manejo de resíduos.
Apreensivos com essa movimentação de defesa da incineração estão os ambientalistas e ativistas do clima, por causa da poluição ambiental e dos riscos que a incineração gera.
Para os críticos, o PL/924/2022 vai contra o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, pois as unidades de recuperação energética causam grandes impactos ambientais, principalmente com a liberação de dioxinas e furanos que seriam emitidos sem controle por essas usinas. Além disso, as incineradoras seriam caras e se tornariam uma despesa a mais aos cofres públicos, com obrigação de gerar constantemente resíduos para alimentá-las, em vez de reduzir a geração. No lugar de aprovar incineradoras, seria necessário proibir que os orgânicos sejam enviados aos aterros e obrigar as cidades a fazerem coleta seletiva eficaz.
O setor cimenteiro também tem grande interesse no uso de resíduos. Foi lançado em dezembro do ano passado o Atlas de Recuperação Energética, que mapeia as regiões com maior potencial de aproveitamento do lixo para geração de energia. A ferramenta integra o Sinir + (banco de dados de informações sobre o saneamento) e tem o apoio da indústria do cimento, representada pela Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP).
Segundo a associação, o setor cimenteiro pode contribuir no aumento da vida útil dos aterros sanitários e industriais e com as metas públicas de eliminação de lixões e reduzir as emissões do gás metano, com o coprocessamento e com a utilização do CDRU (Combustível Derivado de Resíduos Urbanos), em substituição ao coque de petróleo, combustível mais utilizado no processo de fabricação de cimento.
O setor de cimento anuncia ter como meta de redução de emissão dos gases de efeito estufa chegar a 2050 utilizando 55% de combustíveis renováveis de fontes como: resíduos urbanos considerados sem reciclabilidade, lodo de esgoto, pneus inservíveis, resíduos agrícolas (como casca de arroz, caroço do açaí, casca do babaçu) e resíduos industriais.
Existe uma mobilização internacional contra a incineração de resíduos. No último dia 25, a Aliança Global contra a Incineração (Gaia) lançou uma carta pública com 175 associações de 35 países denunciando a organizadora de fundos do clima CBI (Climate Bonds Initiative) por considerar a queima de resíduos como combustível alternativo em fornos de cimento como parte de recomendações de financiamento climático.
Segundo a carta, se a CBI mantiver esse entendimento, “milhões de dólares destinados à mitigação do clima sustentarão uma das indústrias mais poluentes do mundo”.
“Mais uma vez, a CBI revelou-se uma marionete da indústria poluidora, em vez de uma voz confiável que pode impulsionar uma rápida transição para uma economia de baixo carbono e resiliente ao clima. Instamos o CBI a levar em consideração nossa contribuição e parar de fornecer credenciais ecológicas para incineração de resíduos em fornos de cimento, que é exatamente o oposto de como deveria ser a ação climática”, diz a diretora do programa climático de GAIA, Mariel Vilella.
O documento lista os seguintes problemas da incineração de resíduos em fornos de cimento:
As fábricas de cimento não têm meios para filtrar metais pesados voláteis ou poluentes orgânicos persistentes. As comunidades que moram próximas sofrem os impactos mais severos da poluição do forno de cimento;
A queima substituiria uma forma de combustível fóssil por outra, deixando de reduzir as emissões de GEE. O tipo de resíduo que os fornos de cimento querem queimar é o plástico, e o plástico é feito de 99% de combustíveis fósseis;
Dar incentivos para queimar resíduos nesses fornos tornará o mundo mais esbanjador. Fornecer títulos climáticos legitimará a dependência da indústria de cimento na queima de resíduos como modelo de negócios, criando perversamente uma demanda consistente por resíduos;
A indústria do cimento tem uma pegada climática alta – 45% de todas as emissões de GEE do setor industrial são provenientes da fabricação de cimento. Se a indústria cimenteira fosse um país, seria o terceiro maior emissor de GEE do mundo.
Fonte: UOL
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